Na caleidoscópica culinária judaica, quem manda mesmo é a ‘comida de vó’

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“Tentaram nos matar, não conseguiram, vamos comer.” É com essa máxima que, humoristicamente, explicam duas das maiores paixões do povo judaico: sobreviver e, claro, comer. Se a primeira é uma sucessão de tragédias, perseguições e resistência, a segunda colore a identidade judaica com o que ela tem de mais mágico: uma imensa variedade.

E aqui não entram somente as divisões entre judeus israelenses, ou daqueles que floresceram em diáspora numa infinidade de países (dos EUA, à Polônia e até mesmo no Iraque), nem entre ashkenazi ou sefaradi, nem entre os que seguem ou não a dieta kasher. Cada casa judaica é um universo culinário, como descobriu Clarice Reichstul, que, ao lado de uma verdadeira legião de netos de avós cozinheiras de mão cheia, animou o retorno do último restaurante judaico do Bom Retiro, o Shoshana Delishop.

Mas antes de contar essa saga coletiva, vamos voltar para a cozinha que criou Clarice, a de Dona Wala.

Cozinha de praticidade, festa e afeto

Nascida na Polônia, Wala chegou ao Brasil no pós-Segunda Guerra e foi quem ensinou o caminho das pedras na cozinha para filhos e netos. Se nos almoços de sexta, quando recebia a família toda, a dona de casa buscava a praticidade de um bom schnitzel de frango com batatas, nas festas (em todas elas), o cardápio era de um esmero que arrancava elogios. Nas festas ela sempre fazia um charme ‘ai, no próximo ano a gente vai mudar o cardápio’. E meu pai e seus amigos falavam: ‘Dona Wala, como assim? A gente espera meio ano pra comer sua comida e você vai mudar o cardápio?’. Ai, ela achava ótimo e não mudava nada”, relembra Clarice.

Outro clássico da avó é a lembrança culinária mais antiga que Clarice se recorda: a “sopa de bolinha”, mais conhecida como kneidelach. Os bolinhos de pão ázimo, típicos de Pessach, eram a introdução culinária das crianças nesta cozinha — “os adultos acham que você não vai gostar de gelfite fish [bolinho de peixe cozido com molho de raiz-forte e beterraba], que raiz forte vai ser muito ardido”. E na casa de dona Wala, prato também para Rosh Hashana (que, aqui no Brasil, cai na primavera).

“Então tava aquele puta calor no começo de setembro e a gente lá comendo sopa de bolinha, com o bigode suando”, conta. Para a avó, o carinho estava no prato: desde as reproduções das torradas com manteiga e geleia para a pequena Clarice, como as das embalagens, até uma receita de estrogonofe de peixe, criação desenvolvida para que o filho Henri (pai de Clarice) competisse em uma disputa de escoteiros — em que ganhou o segundo lugar e ficou bem chateado.

Era isso, uma comida comum. Era um lugar de de afeto. Na casa dela que você podia tomar Guaraná, água com gás, doce, biscoito. Era especial”, lembra Clarice. Falecida aos 92 anos, dona Wala deixou cadernos de receitas inacabados, por culpa do Alzheimer que já não permitia colocar no papel as receitas de uma tradição e de uma vida. “A coisa mais triste”, lamenta Clarice. Sua figura, no entanto, ainda inspira os muitos encontros da família em refeições comandadas não só por Clarice, mas por Henri, que também não perde a oportunidade de estar entre as panelas — e hoje, os 13 netos — , fazendo geleia e picles, suas últimas obsessões culinárias.

Um universo de avós

Depois de muito tempo que eu fui entender que o que eu fazia na casa da minha avó com ela era bem particular da nossa família e a gente não tava nem aí”, conta Clarice. E foi nessas particularidades da comida de cada casa judaica que surgiram as receitas DO Shoshana — que nem sempre segue as receitas DA Shoshana, que comandou o espaço na Rua Correia de Melo, 206, de 1991 a 2020, sob nomes como Adi Shoshi Delishop, Shoshana Delishop e Delishop.

Reaberto em setembro, o espaço pertence a um grupo de mais de 25 sócios, que “herdaram” e compartilharam com Clarice as receitas originais de Shoshana Baruch e seu filho Nir, e acrescentaram cada um pedaço de sua história, suas referências e, claro, “a comida da vó” particular. No princípio, os testes foram fazer várias versões das mesmas receitas, de acordo com o que surgia da memória afetiva de cada um.

O resultado foi uma colcha de retalhos de sabores e lembranças com a cara de uma boa festa judaica: muitas pessoas, muitas opiniões. “Na hora de escolher, tinha essas receitas e jeitos todos e aí tinha uma briga que queria a receita da Shoshana, eu queria a da minha avó, tinha as da Paca também”, relembra.

Da cozinha de Shoshana, se mantiveram clássicos, como a “língua da Shoshi” e a shpondra, uma costela ponta de agulha cozida, servida com ferfele (uma massinha de matzá)…

As variações acontecem até em pratos que parecem quase sagrados. O gefilte fish tem um gosto diferente em cada lugar: o húngaro é apimentado, o polonês é mais doce, o russo é mais salgado. “Aqui é a receita da Shoshana e não é a da minha avó, porque eles acham a dela sem graça”, conta Clarice.

No restaurante, aliás, o bolinho ganhou uma versão frita! Heresia? Não para Clarice, que defende que o caleidoscópio da culinária judaica não deve abrigar “invencionismos”, mas que é uma cozinha de experimentação e adaptação.

Para isso, quanto mais gente, melhor. Clarice revela que há planos de o restaurante abrir uma vez por mês para receber quem queira levar suas receitas para ferver no Shoshana, de clientes antigos e netos apaixonados àqueles que fecharam seus restaurantes na pandemia. Se é o último lugar que tem de comida judaica aqui no Bom Retiro, ele tem que contar essa história”, acredita.

Um pouco de Brasil e uma pitada de mundo

Nessa amplitude, há espaços também para quem nem tem uma “bobe” (avó em ídiche). Ao lado de Clarice, quem toca a cozinha no dia a dia é a chef Graziela Tavares (apenas “Gra” em toda a conversa).

E foi ela que trouxe a solução ideal para o bendito bolinho de peixe, que na receita original leva carpa (que não se encontra mais). Experiente em terras amazonenses, a chef sugeriu o uso do pacu e a receita final ainda é misturada com peixe traíra. Outro mergulho na diáspora são as referências de duas autoras de cabeceira para a dupla: “The Book of Jewish Food”, da britânica nascida no Egito Claudia Roden, chamado de “Bíblia” por Clarice. E o escrito judaico-baiano “Beabá da Bessarábia à Bahia – Histórias e Receitas”, de Sulamita Tabacof – cujo tchulendt leva cevadinha, feijão fradinho, feijão branco, grão de bico!

“Você tem comida da Bulgária, da Polônia, da Rússia, do Egito, de Israel, da Espanha, da Itália, do Brasil, a comida sefaradim de Belém, tudo é altamente adaptado, como qualquer comida de diáspora”, afirma Clarice. Até por isso a gente brinca que ‘qualquer coisa pode ser judaica’. É a nossa desculpa para tudo”, brinca.

 

Sobremesa-símbolo

Na hora de lembrar do que mais caracterizava dona Wala, muitos poderiam implorar por uma receita de varenike — que Clarice executa com beleza e considera a parte mais terapêutica de seu Paca Polaca, mas que sua avó sempre comprava da vizinha Zilanna “por dar um trabalho absurdo pra fazer”.

Para uma avó que era fã da praticidade, nada melhor que um prato fácil. Para uma casa judaica, nada mais ancestral que uma boa compota. A receita mais comum leva frutas secas, damasco e muito açúcar. Na casa dos Reichstul, no entanto algumas especificidades se destacam — e entram no menu do Shoshana. É uma compota leve, em que se cozinha cada fruta em separado. “Não fica aquela maçaroca marrom”, se orgulha Clarice.

Fonte: UOL

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