‘Arruinaram minha infância’: novas versões de He-Man atualizam universo do herói e revoltam fãs conservadores

Novo-he-Man

O personagem é tão marcante que criaram duas novas produções para ele, uma mais diferente do que a outra. Ícone dos anos 1980, He-Man povoa o imaginário de toda uma geração que cresceu vendo a série animada e brincando com a linha de bonecos da qual ele é a estrela. Natural, portanto, que a NetFlix buscasse explorar esse nicho nostálgico com reboots do desenho clássico, lançado em 1983.

O primeiro, “Mestres do Universo: Salvando Eternia”, estreou no fim de julho sob forte polêmica e críticas positivas. Mais voltado para o espectador adulto, ele ousou deixar o personagem em segundo plano para dar mais protagonismo a Teela, sua escudeira. Já o segundo, “He-Man e os Mestres do Universo”, estreou no dia 16 de setembro, tendo o público infantil como alvo. Muito mais fiel ao espírito original, retrata as origens do herói, destinado a salvar o seu planeta, Eternia, das forças do mal.

Acontece que tocar em um item da memorabilia dos fãs tem suas consequências. Nem todo mundo reagiu bem ao ver os personagens atualizados com estéticas e valores morais do século XXI. A Teela empoderada de “Salvando Eternia”, que traja roupas mais funcionais do que sensuais, irritou os puristas. Mesma coisa em relação aos gráficos em 3D de “Mestres do Universo”, que fez muito saudosista nas redes sociais comparar o herói de Eternia a um Transformer.

— Isso está virando comum em reboots de desenhos clássicos — diz a youtuber de cultura pop Miriam Castro, do canal Mikannn. — Os saudosistas acham que a atualização está arruinando a infância deles, como se alguém tivesse destruído todas as cópias da produção original. Não faz sentido querer que um desenho de 2021 seja igual ao dos anos 1980.

Versão original de He-Man Foto: Divulgação
Versão original de He-Man Foto: Divulgação

Castro conta que diversos fãs do desenho encheram seu canal com comentários machistas, reclamando do visual menos “feminino” da personagem She-Ra, por exemplo. Vale lembrar que, logo no primeiro episódio de “Salvando Eternia”, He-Man aparentemente morre em uma batalha com sua nêmesis Esqueleto, só reaparecendo alguns capítulos depois, em flashbacks. Com isso, Teela ganha protagonismo, sendo repaginada como uma mulher forte, independente e lésbica.

Nos comentários de sua página no Facebook, que acumula mais de 400 mil seguidores, os administradores do site de cultura nerd Torre de Vigilância viram um verdadeiro choque de geração entre os espectadores dos reboots.

— De um lado, um público mais puritano que quer algo o mais parecido possível com o passado e, do outro, o público da nova geração, que não conheceu o desenho original, e certamente está mais familiarizado com a linguagem atual dos streamings — diz o editor Guilherme Marconi.

He-Man em “He-Man e os Mestres do Universo” Foto: Divulgação
He-Man em “He-Man e os Mestres do Universo” Foto: Divulgação

Criador do perfil Diversidade Nerd (@diversidadenerd_), no Instagram, Christian Gonzatti acredita que a desavença entre a turma do “estragaram o meu desenho” e a do “tem que atualizar mesmo” tem raízes políticas. Ele estuda as disputas sobre gênero e sexualidade que vêm sendo travadas na cultura pop nos últimos anos, transformando a indústria cultural como um verdadeiro campo de batalhas ideológicas. O caso de He-Man chamou tanto a sua atenção nesta área que ele está coletando posts para compor o corpus da sua tese de doutorado. Entre as reclamações dos haters, estão comentários como “(o elenco feminino) é mais troncudo que o masculino”, “todo mundo ficou mais macho, menos o Adam”, e “já tem mutante gay, lésbica, trans, bi e os krl. Tem até a tempestade negra”.

— O que está acontecendo com He-Man aponta como há, no caldo cultural brasileiro, um fechamento em relação a mudanças na mídia — diz ele. — Muitos perfis se apegam a uma ideia de nostalgia para performar esse incômodo, mas a nostalgia também pode se transformar em um conservadorismo que vai negar a possibilidade de outras representações de gênero, sexualidade e raça.

A “desconstrução” em “Mestres do Universo: Salvando Eternia” foi tão radical que o lançamento de “He-Man e os Mestres do Universo”, apenas dois meses depois, foi visto como uma espécie de aceno ao público conservador. Com menos polêmicas, porém, este último vem sendo menos comentado nas redes, apontam os sites de cultura nerd ouvidos pela reportagem.

É fácil entender por que o público masculino mais velho ainda se apega à figura do antigo He-Man. Como mostra o terceiro episódio da série documental “The toys that made us” (Netflix), que conta a história de brinquedos marcantes, os personagens de Eternia foram criados pela fábrica Mattel para vender bonecos para meninos. Originalmente, o desenho ficaria em segundo plano. Ao brincar com o He-Man, os garotos imaginavam ter o mesmo poder do personagem, cujo lema era “eu tenho a força”. Não à toa, muitos comentários coletados por Gonzatti reclamavam que a Netflix tinha “matado” o personagem —  e, junto ele, todo um modelo masculino que aprenderam a emular.

Curiosamente, quando foi ao ar nos anos 1980, o desenho não era alvo dos conservadores, e sim de setores mais progressistas. E isso tanto por sua origem consumista quanto por sua trama que, supostamente, fazia apologia do colonialismo.

— A Mattel acabou sendo acusada pelos órgãos que controlam a mídia americana de estarem fazendo spot publicitário de 30 minutos — explica o pesquisador Augusto Bozzetti, autor da dissertação de mestrado “O código He-Man: narrativas forjadas em um banco de dados analógico”. — E com certa razão, porque a série era um pretexto para vender bonecos.

Informações; O Globo

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