Um ano de ‘apagão’ na cultura: em 13 de março de 2020 setor era forçado a parar pela pandemia

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Há um ano, a pandemia começava a impactar o cotidiano dos brasileiros, embora ainda como uma ameaça do que se via na Ásia e na Europa, sem a dimensão da crise sanitária que levaria mais de 170 mil vidas nos meses seguintes. À época, diante de 19 casos confirmados de Covid-19 no Estado, o então governador Wilson Witzel — que seria afastado seis meses depois por suspeita de desvios de recursos da saúde — assinou o decreto nº 46.970, que suspendeu todos os eventos públicos durante 15 dias, inicialmente. O decreto, publicado na tarde daquela sexta-feira 13, pegou muitos artistas, produtores e gestores culturais de surpresa. Shows foram cancelados, temporadas interrompidas, exposições deixaram obras fechadas longe do público, estreias foram suspensas — em muitos casos, sem chance de voltar a acontecer.

Nos meses seguintes, outras expressões foram incorporadas ao glossário artístico, como lives, peças transmitidas, on-line viewing rooms (as plataformas virtuais que substituíram as feiras de arte presenciais). As ações à distância, muitas vezes patrocinadas pelo poder público ou por apoios privados, não foram suficientes para manter um setor que tem por base o encontro, a circulação e a aglomeração. E, sobretudo, para atender uma grande parcela da cadeia produtiva que depende diretamente dos eventos, como músicos, iluminadores, cenógrafos e outros técnicos. A aprovação da Lei Aldir Blanc, em agosto, e a liberação de R$ 3 bilhões em caráter emergencial, amenizou a crise mais aguda, mas não o suficiente para manter o segmento por tanto tempo.

Perda de R$ 69,2 bilhões

O impacto no setor foi traduzido em números e em pesquisas realizadas ao longo do ano. Um dos estudos, realizado em conjunto por Fundação Getúlio Vargas (FGV), Sebrae e Secretaria de Cultura de São Paulo, estima uma perda de R$ 69,2 bilhões na economia criativa no biênio 2020-2021 .

— Este impacto pode ter aumentado. Ano passado, não daria para imaginar que estaríamos num momento ainda mais difícil agora — pondera Luiz Gustavo Barbosa, da FGV Projetos, que coordenou a pesquisa. — Acredito que, com a vacinação, o setor vai passar por uma retomada, como irá acontecer com outros segmentos. Até porque existe uma demanda represada do público.

Os desafios são muitos. Após uma experiência on-line com a transmissão de “Autobiografia autorizada”, Paulo Betti, por exemplo, diz ter “perdido o pique” inicial para encenar à distância, preferindo centrar as energias nas lives:

— Vejo as lives como uma nova versão do Teatro do Oprimido do Augusto Boal. É onde milito contra as fake news e tento enfrentar as agressões que sofremos nessa pandemia.

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Por ora, a maior parte dos espectadores se mantém virtualmente conectada, enquanto alguns espaços retomam as atividades com limitação de público. Uma das referências da cultura carioca, o Theatro Municipal iria reabrir as visitas guiadas no último dia 8, mas vai aguardar até o fim do mês pela melhora nas condições sanitárias. Empossada em janeiro, a nova presidente da casa, Clara Paulino, planeja a volta dos espetáculos com público no segundo semestre.

—Retomamos as atividades pela Escola de Dança Maria Olenewa e outras rotinas internas— conta Clara. — Pretendemos abrir aos poucos para o público, com 40% da capacidade, com obras que exijam uma quantidade menor de profissionais da orquestra, do coro e do balé.

Nesta edição, colhemos depoimentos de cinco profissionais de diferentes áreas — a atriz Suely Franco, o músico João Barone, o pintor Arjan Martins, o cineasta Maurício Eça e a livreira Kiki Machado — , que ilustram parte da situação da cultura neste ano que insiste em não acabar (Colaborou Bolívar Torres)

‘Minha vida profissional está estacionada’, João Barone, músico

“Naquela sexta-feira, não chegamos a ir para o Circo Voador fazer o primeiro dos dois shows que abririam a turnê nacional ‘Paralamas clássicos’. Estávamos de stand by, em casa. Mas o show estava pronto, seria uma festa linda, duas noites de ingressos esgotados.

Da consternação inicial vimos as coisas piorando e aí fomos assimilando a situação da maneira mais realista possível. Ficamos eu, Bi Ribeiro e Herbert Vianna cada um num canto, em resguardo total, e até por isso perdemos o primeiro movimento das lives. Só fizemos no fim do ano. Não tínhamos condições de nos encontrar naquele momento. É importante frisar nossa total sintonia com as medidas de contenção da pandemia, nunca tivemos dúvidas quanto à necessidade do isolamento social. É óbvio para nós que é preciso restringir tudo.

Minha vida profissional está totalmente estacionada. Fizemos dois shows em drive-in, algumas lives. A minha vida é o Paralamas, o resto é bico. Não consigo fazer muita coisa a não ser esperar. Nossa equipe fixa é enxuta, oito ou dez pessoas entre músicos e técnicos, então a gente consegue dar uma ajuda de custo, mesmo que modesta, dentro da nossa possibilidade. Mas sabemos que tem toda uma cadeia, os dentes da engrenagem do show business, que está sem trabalhar. Fizemos algumas ações em prol dessas pessoas, usamos o nome Paralamas, eu mesmo dei um tambor para ser rifado.

Estamos num momento terrível que não imaginávamos há um ano, mas não posso perder o otimismo e a esperança de que até o fim do ano tenhamos uma perspectiva de volta, mesmo com restrições. Não podemos esmorecer.” (Depoimento a Luccas Oliveira)

‘Além da Nicette, perdi outras três grandes amigas’, Suely Franco, atriz:

“Vinha de uma temporada com a peça ‘Quarta-feira, sem falta, lá em casa’, inicialmente contracenando com a Eva Wilva, que depois foi substituída pela Nicette Bruno. Estávamos nos preparando para estrear no Rio, justamente no dia 13 de março, quando soubemos do fechamento dos teatros, e que a estreia seria adiada. A princípio, imaginamos que ia ser só por duas semanas mesmo, e continuamos ensaiando para não perder o texto. Mas foi passando o tempo e nos demos conta de que não ia dar para voltar tão cedo para o palco. Nesse período, estava sempre em contato com a Nicette. Além da peça, chegamos a fazer uma publicidade juntas, imaginando quando voltaríamos a ensaiar. A morte dela(por Covid-19, em dezembro) me pegou de surpresa, tinha esperança de que ela pudesse melhorar. Foi um choque muito grande, ainda mais sendo uma pessoa tão querida como a Nicette.

Além dela, perdi outras três grandes amigas, que não eram do meio artístico, de uma hora para outra. Também foi muito pesado ver a situação de quem trabalha nos bastidores, as camareiras, as bilheteiras, os técnicos, que passaram muito tempo sem renda.

Nesse período, tive experiências novas, como participar de um espetáculo on-line, e abrir uma conta no Instagram. É um outro jeito de manter contato com o público. Gosto de contar histórias e piadas nos vídeos.

Estou me preparando agora para estrear um monólogo, ‘Ela e eu: Vesperal com chuva’, no Glaucio Gill, que ainda está na dependência dos números da pandemia. Já tomei a primeira dose da vacina, espero tomar logo a segunda e seguir em temporada.” (Depoimento a Nelson Gobbi)

‘Um amigo passou a vender produtos artesanais’, Maurício Eça, cineasta

 “Passei o carnaval em Cancún e mal sabia o que estava por vir. O vírus já estava circulando, mas não sabíamos que de forma tão próxima. Mas daí chegou aquele 13 de março. Todos já estávamos cheios de dúvidas sobre o futuro. As cabines de imprensa dos dias 11 e 12 já haviam sido canceladas (dos filmes ‘A menina que matou os pais’ e ‘O menino que matou meus pais’). Mas foi no dia 13 que paramos tudo. A Galeria (distribuidora dos longas) suspendeu as pré-estreias e o lançamento, que era em 2 de abril. Aliás, foi em abril que a ficha caiu e percebemos que essa loucura iria durar muito mais do que esperávamos.

Desde então, guardei os filmes numa gaveta, tentei não pensar muito nisso e segurar a ansiedade. Os dois filmes continuam frescos e atuais, sinto que as pessoas ainda têm bastante interesse e é muito frustrante que ainda não possam ter visto.

Não foi uma ducha de água fria só em mim. Para o Leo (Bittencourt) e a Carla (Diaz) , protagonistas, deve ter sido barra pesada também. Acho que não vamos precisar, mas faria sentido esperarmos a Carla sair do ‘BBB’ para lançar o filme, permitindo que ela participe do processo. Sei que eles chegarão aos cinemas ainda em 2021, mas provavelmente no segundo semestre.

Nesse ano de pandemia, vivi uma mistura de sensações. Medo e tristeza diante de tantas incertezas e mortes.

 Mas aprendi a jogar o jogo. Estudei, fiz um curso de roteiro, lecionei e dirigi ‘A garota invisível’ (Netflix), rodado remotamente. Consegui trabalhar na minha área, mas nem todo mundo conseguiu. Vi amigo do audiovisual que passou a vender produtos artesanais, teve outro que virou entregador do iFood. Um ano muito triste.

Os protocolos sanitários para os sets demoraram a sair, assim como a Lei Aldir Blanc. Talvez eu tenha até me tornado uma pessoa mais tranquila por entender que é preciso fazer uma coisa de cada vez, viver os dias intensamente e aproveitar o que der.” (Depoimento a Pedro Willmersdorf)

‘Perdi o trabalho de uma vida toda’, Kiki Machado, livreira

“Minha última reunião com amigos pré-pandemia foi na primeira semana de março, uma homenagem ao poeta Armando Freitas Filho no IMS. Estávamos entre amigos, foi uma noite agradável, mas já havia algo no ar. Quando veio o decreto estadual que fechou o comércio, eu já havia me preparado para trabalhar em casa. Sabia que não seriam só 15 dias com tudo parado, como muitos pensavam. Previ uns três meses sem receita, o que já seria difícil para a livraria. Mas logo vi que a gravidade da situação era maior, com a falta de logística no país para enfrentar a pandemia e toda a irresponsabilidade dos governantes.

Quando a Timbre voltou, em julho, não era mais a mesma coisa. As vendas presenciais ficaram muito menores. Nos meses seguintes, tentamos nos reinventar, aumentando nossa presença on-line. Como havia menos pessoas circulando na livraria, passamos a enviar dicas de livros para os leitores. As pessoas curtiam e até ligavam para pedir sugestões. Só que não é igual a entrar, folhear o livro e falar com os vendedores. Perdemos essa relação presencial.

Dezembro foi um mês emblemático. Nem o Natal salvou as vendas, e percebi que a livraria, naquele formato, não poderia mais existir. Não era a mais a livraria que eu criei, e também já não tinha como fazer um investimento forte para mantê-la. Perdi o trabalho de uma vida toda, mas sabia que fechar era a coisa certa (a Timbre cerrou as portas em 31 de janeiro). Estamos terminando de pagar os funcionários e agindo com a correção que sempre tivemos. Isso era o mais importante para mim.

Gosto de olhar para a frente e pensar em novas perspectivas. Continuo fazendo a curadoria da Livrarias das Marés, em Paraty. Há muita coisa para fazer no mundo do livro. Tenho mil planos para colocar em prática.” (Depoimento a Bolívar Torres)

‘No voo, uma passageira se sentiu mal’, Arjan Martins, pintor

“No dia 13 de março do ano passado, eu estava voltando para o Rio de Nova York,aonde fui para duas semanas de compromissos profissionais e para pesquisas em museus, que já foram um pouco prejudicadas pelas restrições nos EUA. No voo, uma passageira se sentiu mal e foi necessário fazer um pouso de emergência para que ela fosse atendida. Ela precisou de dois cilindros de oxigênio e os paramédicos optaram por desembarcá-la, e seguimos a viagem sem saber se poderia ter sido Covid ou não.

Depois desta tensão, cheguei com o Rio já em quarentena, e fiquei isolado em casa. Hoje moro e trabalho em Santa Teresa, mas na época o meu ateliê era na Glória, e tive que mantê-lo fechado durante essas primeiras semanas. Trabalhando em casa, tive de optar por obras de dimensões pequenas e médias, só voltando às pinturas maiores quando pude retomar a rotina no ateliê.

Nos meses seguintes, fiquei produzindo para uma individual na Gentil Carioca que estava prevista para o fim do ano passado, mas que acabou sendo adiada para o dia 22 de abril. Essa data, além do significado oficial, o da chegada dos portugueses ao Brasil, marca 1.135 dias do assassinato de Marielle Franco, que está entre os fatos que me mobilizam nesta produção.

Durante o período da pandemia, também eclodiram em várias cidades os protestos do Black Lives Matter, após a morte de George Floyd. Fui incorporando algumas das imagens destes personagens, que poderiam ser manifestantes em protestos ocorridos em qualquer metrópole do mundo. De alguma forma, a desigualdade escancarada na pandemia, que vemos todos os dias a céu aberto nas ruas, também traz impactos nestes trabalhos. Toda essa dívida social histórica reverbera nas questões contemporâneas que estão entre os grandes temas da arte hoje.” (Depoimento a Nelson Gobbi)

Informações: O Globo

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