De zona rural ao doutorado; Professor vira inspiração ao superar fome e preconceito

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A luta para apagar as marcas de um passado duro e cruel, para serem vistos com igualdade e ocuparem todos os lugares da sociedade. É disso que se trata o antirracismo, porque não basta só não ter preconceito, é necessário também lutar contra ele. Nas séries especiais do Novembro Negro produzidas pelo Jornal Folha do Estado, foram debatidas diversas nuances acerca do tema, e nesta última matéria do mês, vamos tratar da superação de quem sentiu as marcas do racismo na pele e lutou para superá-las. O exemplo vem da zona rural de Antônio Cardoso, o município mais negro do Brasil, de acordo com o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010.

Foi lá, onde a maioria da população (50,65%) se declarou negra, que nasceu Ozeias de Almeida Santos. Tão jovem, 38 anos de idade, Ozeias já é graduado em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); mestre em Planejamento Territorial, também na UEFS e doutorando em Geografia Humana na USP, melhor universidade do Brasil e a segunda mais prestigiada da América Latina, segundo o mais recente ranking britânico publicado em julho deste ano. A Unicamp, universidade onde o professor Ozéias se tornou especialista em Gestão Estratégica em Políticas Públicas, é a terceira melhor universidade latino-americana. Atualmente, ensina na rede estadual de ensino da Bahia e é vereador do município onde sua vida começou.

“Nasci na Comunidade Quilombola da Santa Cruz, estudei toda minha vida na escola pública. Em 2006 entrei na UEFS e logo iniciei a minha pesquisa com as comunidades quilombolas de Antônio Cardoso, tema que pesquiso até hoje, sempre tive interesse e curiosidade em saber minhas origens e do nosso povo. Há 19 anos atuo no movimento social do município, fui um dos fundadores da Associação Quilombola de Paus Altos e Santa Cruz. Meu envolvimento com as questões sociais do município foi o principal motivo que me levou à política, as pessoas viam em mim uma oportunidade em representar e defender as nossas demandas no poder público”, contou.

Durante seu trajeto, o professor enfrentou lutas contra o racismo. “Qual negro nunca sofreu discriminação e racismo no Brasil? Quando o racismo não é escancarado a gente percebe nos olhares das pessoas. Foram inúmeros episódios, alguns foram parar na justiça, outros eu rebati no momento. Lembro que em 2010 eu participei de um intercâmbio, em Turim na Itália e em um evento promovido para receber a delegação brasileira e lá também estavam presentes alguns membros da delegação dos países africanos, um pequeno grupo fez alguns gestos nos chamando de macacos, eu os encarei nos olhos e logo eles perceberam a minha indignação e pararam, a organização do evento também percebeu, logo eles se retiram do local”, contou.

“Eu sempre digo aos meus alunos que meu primeiro desafio foi vencer a fome, a minha família sempre passou privações. Nós tínhamos dificuldades em tudo, desde comida na mesa até roupas. Minha mãe [dona Valdemira Sena de Almeida, 75 anos] ficou viúva com 45 anos e com 6 filhos (crianças e adolescentes). Passamos muitas dificuldades, foram muitas as vezes que chagávamos da escola e não tinha comida. Mas, com toda dificuldade, nossa mãe nunca permitiu que a gente deixasse a escola. Dos 6 filhos, 4 tem nível superior. Me tornar provavelmente o primeiro doutor (de fato) do município de Antônio Cardoso é uma honra pra mim, mas não é uma conquista apenas minha, é uma vitória para o nosso povo preto, é uma conquista da minha mãe que sempre lutou e sempre acreditou nisso. Acredito que consegui realizar parte dos meus sonhos de criança, mas ainda tem muitas coisas a serem conquistadas, tanto projetos coletivos como também individuais”, explicitou.

A história de vida de Ozeias hoje serve de lição para o povo de Antônio Cardoso. “Fui eleito vereador pela primeira vez em 2012, ano também em que iniciei minha atuação como docente na Secretaria de educação do Estado da Bahia através de concurso público. Em 2016 concluí o mestrado e a especialização e em 2018 entrei no doutorado da USP. A minha atuação como professor, pesquisador, vereador e líder comunitário sempre andaram de mãos dadas, uma atuação complementa a outra, por exemplo o meu mestrado e doutorado foram voltados para os estudos das comunidades quilombolas do município”, disse.

Assim como na história de Ozeias, a luta deve ser presente na vida de todos que estão em busca da garantia de direitos. “Eu costumo dizer aos meus alunos para nunca desistirem dos seus sonhos, se temos um sonho, temos também a obrigação de realizá-lo. No entanto, precisamos de investimento, a tal meritocracia não funciona, nessa caminhada eu não venci sozinho, foi uma jornada coletiva. Hoje temos até mais oportunidades para realizar nossos sonhos, mas precisamos de mais, precisamos lutar para que o Brasil volte a acreditar em seus jovens, precisamos de mais investimento na educação, cultura e esporte. Precisamos lutar pela garantia dos nossos direitos, não podemos permitir que governos autoritários e sem compromisso com a juventude destrua nosso futuro. Precisamos nos envolver na política, nos movimentos sociais e lutar sempre pelo bem-estar coletivo”, contou.

Mas, o racismo só será erradicado, quando essa luta for também do poder público, como explica o professor. “Eu acho que o racismo só se combate com educação escolar e familiar, são necessárias leis mais duras também. Para além disso, o Brasil precisa urgentemente corrigir as desigualdades históricas que existe entre negros e brancos. Precisamos urgentemente que as políticas de reparação aconteçam de fato”.

Informações: FOLHA DO ESTADO

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