O consumo de pornografia favorece a violência contra a mulher? Psicóloga vê como ‘deseducação sexual’

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Com milhares de seguidores nas redes sociais, a página ‘Recuse a Clicar’ defende boicote a sites pornô. Psicóloga vê ‘deseducação sexual’

No primeiro relato publicado pela página Recuse a Clicar, em 10 de setembro de 2019, uma mulher não identificada diz que a pornografia “acabou” com sua vida, mesmo sem ser espectadora. Ela conta um episódio em que foi forçada pelo parceiro a fazer determinadas posições numa relação sexual, como uma performance – o homem teria feito uma pausa para assistir a um vídeo pornográfico. A partir desse dia, afirma, não se envolve mais sexualmente com parceiros que consomem esse conteúdo. “Depois de contar pros meus amigos, nós concluímos que, na verdade, eu tinha sido estuprada”, escreve.

Desde a data da publicação desse texto, a página segue publicando relatos de pessoas sobre como a pornografia afetou suas vidas. A maioria das histórias é contada por mulheres. A mais recente foi ao ar no sábado 6, em que uma internauta explica por que deixou de procurar sites pornográficos: “Há vídeos amadores nos quais é perceptível que as pessoas expostas não sabem que aquele conteúdo está a ser gravado ou que vai ser publicamente divulgado. Há outros em que a violência não é encenada para propósitos de prazer, e que há sofrimento real.”

Recuse a Clicar é uma das únicas páginas brasileiras dedicadas à crítica contra a pornografia. Tem 56 mil seguidores no Facebook, 32 mil no Instagram e também está presente no Twitter e na plataforma Medium. Com protestos contra a exploração sexual, especialmente a pornografia, a prostituição e o tráfico de mulheres, a página mira as empresas que lucram com esse negócio, segundo acusa.

Entre elas, a Pornhub, do Canadá, e a XVideos, da República Tcheca.

Com cerca de três bilhões de visitantes mensais, esses dois sites estão entre os dez mais acessados do mundo, mostrou o site Visual Capitalist, em infográfico do mês passado. Estão atrás, somente, de Google, YouTube, Facebook, Twitter, Wikipedia, Instagram, Baidu e Yahoo. Superam, portanto, gigantes como WhatsApp (12º), Amazon (13º), Netflix (17º), CNN (26º), Globo (30º), Walmart (41º) e Tik Tok (43º). Na crise do coronavírus, o consumo disparou. A Pornhub percebeu pico de aumento de 24% nas visitações em março, pouco depois de a Organização Mundial da Saúde confirmar o estado de pandemia, quando foram liberados conteúdos premium de forma gratuita, para “incentivar” o isolamento. Em junho, o tráfego mundial permaneceu muito maior do que em fevereiro. A grande quantidade de frequentadores faz do Pornhub um veículos mais importantes para anunciantes.

E não falta material. Em 2019, o Pornhub registrou mais de 6,8 milhões de novos vídeos. São 169 anos de conteúdo. “Se tivesse começado a vê-los em 1850, ainda estaria assistindo hoje”, comemorou o site, em boletim daquele ano.

O material veiculado por sites pornográficos, porém, é constantemente associado a violência contra as mulheres. Sobretudo por denúncias. Uma das últimas, revelada pela americana Vice em dezembro, envolveu quarenta vítimas de tráfico sexual pela empresa Girls Do Porn. Segundo reportagem, modelos eram contratadas e depois intimidadas a fazer sexo diante de câmeras. As imagens eram distribuídas sem consentimento, disseram as mulheres, e os pedidos de remoção ao Pornhub não foram atendidos por muito tempo. O canal oficial de Girls do Porn só foi retirado do ar meses depois das acusações. Hoje elas enfrentam as duas companhias na Justiça.

Reportagem recente do The New York Times também revelou a veiculação de vídeos de estupro e abuso infantil no Pornhub. A publicação motivou Visa e Mastercard a bloquearem seus cartões em transações financeiras que envolvem a empresa. O site pornográfico, então, anunciou medidas para conter a disseminação de material ilegal, como a verificação de uploaders, o banimento de downloads dos vídeos e um sistema de moderação expandida, com softwares de reconhecimento de imagem.

Escândalos como esses, entre críticas e conselhos, ganham espaço notório nos feeds de Recuse a Clicar. Como o próprio nome sugere, o objetivo é estimular o boicote aos sites pornográficos. A exploração das mulheres nessa indústria está relacionada às condições econômicas às quais elas estão submetidas no capitalismo, segundo afirma a coordenadora da página, Izabella Forzani, de 31 anos, formada em Direito e moradora de Brasília.

Apesar de a nudez e a sexualidade explícita ser retratada em forma de arte há séculos, Izabella observa alta na produção em massa da pornografia a partir da década de 1970, depois do clássico do cinema estadunidense Garganta Profunda, considerado marco no gênero. Por trinta anos, diz ela, houve um controle maior dessa indústria por grandes produtoras. Com o advento da internet, a pornografia deixou de ser “um monopólio das produtoras” e passou a ser produzida também pelos usuários. É nesse momento que os grandes sites de pornografia passam a liderar o setor, por hospedarem esses conteúdos.

Para Izabella, a “venda de sexo” nesses canais é naturalizada porque há compreensão de que os corpos das mulheres são uma mercadoria, ainda que algumas estejam por vontade própria nessa indústria. Em sua visão, o capitalismo, aliado ao patriarcado, não assegura direitos básicos para as mulheres. Sob estado de miséria e abandono, acabam sendo cooptadas pela prostituição e pela indústria pornográfica. Entre os principais efeitos às atrizes, diz ela, estão o alto número de suicídio, o vício em drogas, o contágio por doenças sexualmente transmissíveis e a incidência de ferimentos em regiões íntimas.

“Não consigo entender a venda de sexo como equiparável a qualquer tipo de trabalho”, diz Izabella a CartaCapital, fazendo referência inclusive a postos precarizados. “É uma ideia liberal olhar para uma mulher pobre e considerar que o consentimento dela é suficiente para desprezar o contexto social que a impele a essa prática.”

Izabella não está na página desde o início. Conheceu as atividades em 2018, no Facebook, quando fundadoras da página procuravam parceiras. No entanto, denúncias derrubaram a conta em 2019, por usuários contrários à causa. Meses depois, a advogada precisou começar tudo de novo. Ela gasta pelo menos quatro horas diárias para produzir conteúdo nas redes sociais de Recuse a Clicar. Também acompanha discussões em grupos virtuais, formados por mulheres e por homens que tentam tirar a pornografia da rotina.

Ao longo do tempo, ela percebeu que a exploração dentro da indústria não é o único problema da pornografia. A violência contra as mulheres está presente na própria forma de lidar com a sexualidade ensinada aos espectadores. O público da página é majoritariamente feminino, e a maior parte das reclamações, segundo ela, é de mulheres que se relacionaram com consumidores de pornografia e passaram por violências físicas e psicológicas. Muitas sofrem com baixa autoestima.

Izabella observa que o consumo da pornografia, maior parte por homens, estimula a dessensibilização da violência, porque é baseado na novidade. Mesmo que o consumidor inicie seu tráfego em vídeos de “papai e mamãe”, ele acaba “se cansando” dessa estética e busca se excitar com conteúdos diferentes. É nesse momento que ele progride em suas expectativas de estímulo, chegando muitas vezes ao hardcore e à erotização de atos extremos com danos físicos, como o enforcamento e a utilização abrupta de objetos inapropriados.

Ela também destaca o reforço de padrões estéticos, que repetem inclusive valores racistas. Há, para ela, a definição clara do que são corpos atraentes, em geral, de pessoas brancas e magras; mulheres negras e imigrantes aparecem como submissas e escravas, e homens negros são objetificados pelo tamanho do pênis e aparecem em papel agressivo.

Na opinião de Izabella, o sucesso da pornografia já contamina a linguagem de outras mídias. Há normalização dessas representações de sexualidade e de gênero, como na publicidade, nas novelas e outras produções de entretenimento.

“A pornografia influencia o gosto das pessoas. É fácil dizer que a indústria alimentícia influencia a minha geladeira, e que a indústria da moda influencia o que eu visto. Na hora que eu falo que a pornografia está influenciando o sexo, isso pode ser interpretado como um absurdo. Mas está”, avalia.

Em um dos relatos citados por Izabella como “devastadores”, de 10 de janeiro, uma seguidora diz que o parceiro constantemente a comparava com as atrizes dos filmes. Sob pressão, ela diz ter sido convencida a produzir conteúdo erótico na internet sob a supervisão dele. Com a grande exposição da imagem, ele disse que ela “não prestava” mais para um casamento e terminou a relação de nove anos. “Ele saiu como santificado. E eu caí em profunda depressão e três tentativas de suicídio”, escreve a internauta. Posteriormente, um vídeo que ela produziu online ainda foi usado por outro abusador.

Noutro relato, de 24 de novembro, a seguidora diz que seu parceiro reconheceu “vício” em pornografia e lhe pediu ajuda. Passou, então, a usar um aplicativo que bloqueia acesso a esse conteúdo. Porém, sentiu-se em “abstinência” e começou a procurar compulsivamente notícias com imagens de famosas com partes do corpo à mostra. “Ele me disse que o máximo que havia conseguido ficar sem [pornografia] foram dois dias, depois ele surtava. Estamos no quinto dia por aqui”, escreve a usuária.

Pornografia é fonte de ‘deseducação’ sexual, diz especialista

Professora de Psicologia na Universidade de Brasília e especialista em estudos de gênero, Valeska Zanello diz que é necessário abordar a pornografia como uma expressão do sexismo, e não como um fenômeno isolado. A pesquisadora descreve a pornografia como uma das principais “tecnologias de gênero” na nossa cultura, ao lado de filmes, músicas e demais peças do entretenimento. As tecnologias de gênero exercem um poder performativo, ou seja, têm o papel de incitar e configurar subjetividades, performances e, sobretudo, emocionalidades.

O problema da pornografia, diz Valeska, é incitar um tipo de emocionalidade nos homens que tem a ver com a cultura da objetificação sexual das mulheres, ensinada a eles desde cedo. Para entender as emocionalidades mais desenvolvidas entre os homens na sociedade contemporânea, a professora analisou conversas em grupos masculinos de WhatsApp, extraídas por “espiões” que colaboraram com o estudo. Na conclusão, ela relatou que os compartilhamentos mais recorrentes tomam a feição da objetificação sexual.

Investigar o conteúdo trocado nesse grupo foi importante para apurar o que é disseminado na “casa dos homens”, metáfora com a qual ela trabalha para perceber o que marca a relação entre eles. A partir dos resultados do estudo, Valeska concluiu que, para ser aceito no grupo dos homens, é preciso “performar a objetificação sexual”. Ela descreve que a cumplicidade omissa marca a relação entre os homens, portanto, o grande desafio para eles é “romper” com a opressão praticada dentro da “casa dos homens”.

Dessa forma, se o processo de “tornar-se” homem já compreende a cumplicidade com a objetificação sexual, a pornografia aparece como mais uma fonte de “deseducação” nesse sentido, considera a professora.

“O consumo da pornografia, facilitado pela internet, tem começado cada vez mais cedo, inclusive levando homens a dificuldades em relações com mulheres reais, com corpos normais”, afirma a professora. “Então, estamos tendo um adoecimento muito grande. Não é à toa que, no Brasil, temos 180 estupros por dia, grande parte em casa.”

Em seu livro Saúde mental, gênero e dispositivos (Editora Appris, 2018), Valeska percebe que, aos homens, são ensinados dois pilares identitários aos quais eles devem responder, o da “eficácia” e o do “provimento”. De maneira sucinta, o dispositivo da eficácia diz respeito à virilidade sexual: para ser um verdadeiro homem, é preciso ser um “comedor”; já o dispositivo do provimento impõe o caráter de trabalhador que “banca” as necessidades de uma casa.

Já as mulheres se subjetivam nos dispositivos amoroso e materno. Para entender o impacto da pornografia das mulheres, diz a professora, é preciso observar o dispositivo amoroso.

Essa “prateleira do amor” é mediada por ideais estéticos construídos no início do século XX, branco, loiro, magro e jovem. Quanto mais distante disso, pior o lugar na prateleira e, portanto, maior a construção do preterimento afetivo de homens em relação a elas, porque são eles os eleitos a avaliadores físicos e morais das mulheres. No nosso país, por exemplo, as mulheres negras, com deficiência, gordas, mais velhas e indígenas aparecem nos piores lugares.

Para sobreviver nessa cultura, diz a professora, as mulheres aprendem a “auto-objetificação”. E a pornografia cumpre um papel importante nesse processo. A chancela de sucesso de mulheridade na nossa cultura é ser escolhida, porque uma mulher solteira é vista sem protagonismo, como uma “encalhada”, a que nenhum homem quis. Tornar-se mulher, portanto, é aprender a usar o corpo como um objeto de barganha. Elas, muitas vezes influenciadas pelas expectativas dos homens com a pornografia, acabam se “auto-objetificando”, mas não porque querem ser tratadas como objeto, e sim, para serem escolhidas.

Censurar os sites pornográficos não lhe parece solução determinante, porque, em sua visão, não seria o suficiente para coibir a disseminação desse conteúdo. Além disso, a proibição poderia despertar interesse ainda maior.

Entre as medidas elencadas por Valeska para reverter os impactos da pornografia, está a procura de ajuda médica para os consumidores compulsivos, com psicoterapeutas especializados e grupos de apoio. Segundo ela, o primeiro passo para os homens é tentar entender os efeitos na sua subjetividade e nas suas relações com as mulheres.

Em termos de política pública, a professora defende projetos que promovam maiores intervenções nas escolas relacionadas à educação sexual e à consciência de gênero.

“A gente precisa colocar as masculinidades na berlinda, se a gente realmente quer pensar numa possibilidade de democracia para frente”, avalia a especialista. “Existe uma identificação com a violência. A pornografia é uma parte desse problema, mas é uma parte importante, porque é uma tecnologia de gênero com entrada capilar, em idades cada vez mais novas.”

Informações: Carta Capital

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