Mulheres denunciam médico por violência obstétrica no DF: “Me rasgou”

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Desde muito nova, a comerciante Claudete Rodrigues Gomes, 32 anos, sonhava com um parto normal, tranquilo e humanizado. Quando a moradora do Cruzeiro sentiu as primeiras dores na madrugada daquele dia 4 de setembro de 2017, logo pensou que Júlia* chegaria ao mundo do jeito que ela havia planejado. A mulher tinha uma série de expectativas sobre o nascimento de sua segunda filha, mas as cicatrizes deixadas entre a vagina e o ânus a fazem lembrar dos traumas vividos.

Claudete entrou em trabalho de parto no Hospital Regional da Asa Norte (Hran), mas foi informada de que só poderia ser atendida no Hospital Regional do Gama (HRG), já que ela morava no Novo Gama, município goiano situado no Entorno do Distrito Federal. Na instituição, a mulher recebeu soro na veia e esperou pelo menos seis horas até a chegada do médico João Luiz Vinhal Júnior, ginecologista responsável pelos partos no dia.

“Ele disse que do jeito que eu estava só ganharia neném depois de uns dois ou três dias e eu acreditei. Naquele momento você acredita muito no médico, porque ele foi a pessoa que estudou para estar ali, então, eu confiei. Depois disso, ele começou a apoiar na minha barriga para fazer o toque e disse que teria de romper a minha bolsa. Aí começou o circo”, relembrou Claudete.

A mulher conta que o médico rompeu a bolsa com uma aparelho parecido com uma “agulha grande” e, depois, começou a gritar afirmando que a grávida “já estava no ponto”. Claudete contou ao Metrópoles que mais de 15 estudantes de medicina entraram na sala para assistir ao parto sem sua permissão.

Após perceber que a dilatação de Claudete caminhava a passos lentos, João Luiz fez pressão na barriga da gestante a fim de tentar “expulsar” a criança. A prática chama-se manobra de Kristeller, técnica considerada obsoleta e proibida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por ser agressiva e poder causar lesões graves.

“O médico era o tempo todo gritando comigo e com as outras pessoas da sala. Estava muito nervoso e me deixando muito assustada. Ele botou a mão na minha vagina e me rasgou com os próprios dedos. Depois colocava o cotovelo no meio da minha barriga e apertava empurrando a neném, sempre gritando comigo com muita grosseria”, disse Claudete.

Já sem forças, a mulher lembra que em determinado momento, o médico fez tanta pressão na barriga que ela perdeu o fôlego e achou que iria desmaiar. “Aí veio o primeiro insulto. Eu comentei que me faltava fôlego e ele perguntou se depois disso tudo eu ainda tinha fôlego e começou a rir de mim”. Na terceira contração, Claudete diz ter agarrado o jaleco de João Luiz e implorou para que ele parasse de colocar peso em sua barriga. “Meu medo era dele estar machucando a minha filha. Fiquei apavorada, mas fui mandada calar a boca, senão a bebê não nasceria”, relata.

Após horas na sala de parto, Júlia* nasceu com um problema na perna que o médico não explicou se foi motivado pela manobra durante o parto. Ainda hoje a criança sente dores e tem problemas para andar, já que tem uma perna maior do que a outra. “Ela nasceu e eu não pude nem chorar, porque ele mandou eu parar. Perguntou qual era o motivo do choro e eu disse que era felicidade, mas acho que era mais alívio por ver que ela nasceu”.

“Se eu costurar feio, seu marido não vai mais te querer”

Claudete diz ter pedido para que sua sogra, Zilvanir Lima Costa, 57 anos, que também estava na sala de parto, acompanhasse a recém-nascida com a equipe de pediatria. A vítima relata que, nesse momento, começou a levar pontos na vagina por uma assistente do médico, identificada como Gabriela Petrocchi Corassa.

A comerciante precisou ser costurada, pois passou por uma episiotomia lacerante, prática em que o médico faz corte entre a vagina e o ânus a fim de facilitar o nascimento do bebê. A técnica também é considerada violência obstétrica quando não justificada.

“Falei para ela que estava doendo muito e que estava sentindo ela me costurar, que não aguentaria de dor. A médica virou para mim e falou: ‘você tem que deixar eu te costurar direitinho, senão vou fazer feio e seu marido não vai te querer mais e vai colocar um nome bem feio na sua criança’”, ironizou.

Após ser liberada para o quarto do hospital, Claudete conta que a laceração da vagina evoluiu para uma fístula retovaginal, complicação que fez com que os gases e fezes saíssem pela vagina. Mesmo avaliada pela equipe médica do hospital, a vítima recebeu alta e procurou atendimento com outros ginecologistas.

Hoje, cinco anos depois, Claudete ainda sente dores durante relações sexuais e tem dificuldades para sentar ou abaixar. A mãe se refere à experiência como “um parto anormal” e luta contra sequelas físicas e psicológicas.

A moradora de Cristalina (GO), Katarina Máximo, 22 anos, também lida com os traumas após ter sofrido violência obstétrica durante atendimento com o mesmo médico: João Luiz Vinhal Júnior. A jovem entrou em trabalho de parto e procurou atendimento no Hospital Maternidade de Cristalina, mas foi informada de que deveria voltar para casa e só procurar a emergência quando estivesse dilatando.

Uma semana depois, em 9 de setembro de 2020, Katarina voltou ao hospital com sangramento. A mulher já tinha ido diversas vezes na emergência, mas não teria sido atendida.

“Cheguei sangrando e gritando de dor. Me informaram que o médico João Luiz estava no hospital, mas estava jantando e só me atenderia quando terminasse. Quando ele pôde me avaliar, já não conseguia mais escutar o coração da bebê. Minha filha já tinha morrido dentro de mim”, comenta.

Katarina conta que seu desejo era de fazer cesariana, mas não foi respeitada. A vítima relata que teve de passar por parto normal e que a bebê foi colocada em uma bacia e não foi mostrada à ela. “Nunca pude conhecer o rostinho da minha filha. Eles não me mostraram e eu não tinha forças para lutar contra isso”, lamenta. A operadora de caixa teve hemorragia interna e chegou a desmaiar pelo menos duas vezes durante o parto. Katarina ainda perdeu um rim, devido a uma hemorragia, e precisou fazer hemodiálise.

Para continuar o tratamento, Katarina foi transferida para o Hospital Regional do Gama, onde João Luiz também fazia atendimentos como ginecologista. “Foi horrível. Me colocaram em uma sala com outras mães que tinham acabado de ganhar neném. Eu tinha acabado de perder uma filha e não recebi suporte nenhum”, diz revoltada.

João Luiz Vinhal Júnior e Gabriela Petrocchi Corassa foram condenados, em primeira instância, pelo Tribunal de Justiça do Gama. Os médicos são acusados por “ofender a integridade corporal e a saúde da vítima, praticando a aceleração de parto”. O juiz decidiu que cada um deve pagar R$ 20o mil para Claudete por danos morais. A defesa dos acusados deverá recorrer da sentença.

Já no caso de Katarina, apenas o médico João Luiz figura como acusado. Segundo o advogado de Katarina, a Justiça não localizou o profissional para intimá-lo.

Claudete e Katarina são duas entre as milhares de mulheres vítimas de violência obstétrica em hospitais do DF. A pesquisa Dimensões da Violência Obstétrica no Distrito Federal, realizada pela Procuradoria Especial da Mulher da Câmara Legislativa, apontou que a maioria das mães sofreu algum tipo de violência no momento do parto.

As vítimas representaram 203 dos 338 formulários on-line preenchidos entre 11 de março e 14 de abril de 2020, o que equivale a 60% das entrevistadas. No total, 25% sofreram alguma violência psicológica; 15% passaram pela manobra de Kristeller; 17% receberam ocitocina (hormônio utilizado para acelerar as contrações); 18% foram proibidas de terem acompanhantes e 25% relataram atendimento com grosseria ou impaciência dos médicos.

De acordo com a epidemiologista Daphne Rattner, presidente da Rede Pela Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna), a violência obstétrica mais comum é quando o médico impede a mulher de participar das decisões do parto e das ações que são feitas no corpo dela. “A mulher é tratada como um objeto. A nossa luta é que as mães possam ser protagonistas dos partos delas”, comenta a médica.

Daphne ressalta que os obstetras têm resistido a se atualizarem com base em evidências científicas. “São muitas pesquisas que ressaltam como a manobra de Kristeller é danosa e deve ser abandonada e, mesmo assim, vemos muitos relatos de gestantes que sofreram a violência. É o mesmo caso da episiotomia, que faz parte de uma cultura que considera o corpo da mulher incompetente para parir. Aí o médico rompe a bolsa para acelerar o parto, sobe na barriga e corta a vagina. O ideal é esperar pela dilatação normal”, finaliza.

Metrópoles tentou contato com o médico ginecologista obstetra João Luiz Vinhal Júnior, mas o profissional não disponibiliza contato de telefone ou e-mail na internet. Ele consta com CRM ativo e seu endereço comercial aparece vinculado aos Hospitais Regionais do Gama e de Santa Maria. A reportagem procurou a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, mas a pasta respondeu que não comenta casos que correm em segredo de Justiça.

A advogada Lecienne Vinhal, que aparece como representante legal de João Luiz em um dos processos aos quais o Metrópoles teve acesso, disse que não iria comentar o caso.

A reportagem também procurou a médica Gabriela Petrocchi Corassa. Questionada sobre a acusação de violência obstétrica em 2017, ela respondeu que “estava no meu primeiro ano de residência médica em 2017”.

O advogado Asdrubal Neto, que aparece como representante legal de Gabriela, comentou que a defesa respeita, mas lamenta decisão da sentença e deverá recorrer. “A doutora Gabriela realizou todos os procedimentos necessários previstos na literatura médica para salvar a vida da paciente e da criança, procurando sempre minimizar os efeitos colaterais da cirurgia”, finalizou.

Em janeiro de 2021, Katarina Máximo também entrou com processo contra João Luiz Vinhal Júnior por negligência médica, mas, neste caso, ele ainda não foi intimado.

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