‘Coronials’; Nova geração dos nascidos durante a pandemia demanda mais atenção

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Há cinco anos, quando Benjamin nasceu, mais de 30 pessoas foram conhecê-lo, nos braços dos pais, na maternidade. Em fevereiro passado, quando Leonardo, Léo, seu irmão, chegou, só as avós e duas tias puderam vê-lo — e em horários diferentes. Em plena pandemia, Leonardo encontrou um mundo muito diferente daquele não só naqueles dias, mas em todos os seus sete meses de vida. Assim como ele, meninas e meninos nasceram em meio a uma realidade jamais vista na história da humanidade, em que um novo vírus se espalhou pelo mundo todo rapidamente. É a chamada geração “coronials”.

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Com menos visitas, menos passeios, os pais trabalhando em casa e, eventualmente, o irmão com aula online, a mãe dos meninos, a engenheira Carla Maria Maffei Miranda Rosa, 41 anos, relata as diferenças.

— O meu primeiro filho teve muito mais contato com as pessoas. Elas vinham em casa, eu saía todo dia com ele para passear, ia ao parque. Só agora que tomei a segunda dose da vacina estou recebendo um ou outro amigo. E fico muito mais em casa. Então, como o Léo não gasta tanta energia, não vê gente nova, fica sempre na mesmice, a parte do sono é bem difícil. A casa fica movimentada o dia inteiro e ele acaba não dormindo — conta.

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O relato da mãe tem explicação científica. Neurocientista e colunista do GLOBO, Roberto Lent afirma que alterações do sono podem ser um dos efeitos dessa nova realidade que impacta as crianças na primeiríssima infância, justo a fase da vida em que o cérebro mais se desenvolve, numa velocidade incrível de 1 milhão de conexões entre neurônios por segundo.

— Uma criança pequena precisa de estímulos, além da mãe e do círculo familiar próximo. E, quando eles não existem, o ambiente é mais empobrecido, isso interfere no desenvolvimento do cérebro. Ainda não deu tempo de medir exatamente as consequências no desempenho cognitivo nessas crianças, mas faz todo sentido que os efeitos da pandemia impactem — afirma Lent. No entanto, não há motivos para desespero.

O convívio com mais pessoas ajuda a formar bebês que sabem como elas podem ser diferentes. Como a madrinha que ri alto, a amiga que faz careta, o tio que joga o maiorzinho para cima ou aquele avô que não dá muita bola para criança. São personalidades e biotipos diferentes.

— Outras pessoas trazem outros modelos e práticas diferentes de interação. O pai e a mãe têm aquela relação, sempre a mesma, a personalidade de cada componente com quem iria conviver traria elementos desafiadores para esse bebê. É uma limitação, ele foi exposto a menos possibilidades de desenvolvimento. Pode ser que, com 3 ou 4 anos a gente perceba crianças com menor possibilidade de interação — afirma Patrícia Manzoli, pedagoga, especialista em desenvolvimento infantil e consultora da CNC Educacional.

O convívio com crianças em creches, nos parquinhos e com os filhos dos amigos dos pais também foi diminuído e isso não deve ser subestimado:

— Até por volta dos 3 anos é a fase em que a criança se percebe no mundo com seus pares, pessoas da mesma idade. Ela aprende  vendo o outro. É diferente olhar para um adulto infinitamente maior que ela andando do que para um coleguinha que dá os primeiros passos. Ela se identifica com alguém parecido, vencendo as mesmas barreiras.

Por isso, Manzoli teme que prevaleça a percepção atual de alguns pais, de que não é mais preciso levar os filhos de menos de 4 anos (idade obrigatória) à escola. Porque, por mais bem intencionados que sejam, nem sempre eles conseguem estimular os pequenos como os educadores, que têm técnicas para incentivar a fala, reconhecer as cores etc.

O impacto da máscara e do sorriso

A educadora conta que já percebe que os “coronials” têm mais sensibilidade a barulhos externos. Mesmo a máscara, o acessório essencial no mundo atual, por mais comum que seja, não ajuda criaturinhas que estão aprendendo a decifrar expressões faciais. Ela mesma percebeu o impacto quando, ao chegar de máscara à uma sala com crianças de um a dois anos, algumas demonstraram medo. Ao se afastar, abaixar a máscara e exibir o sorriso, elas pararam de chorar:

— Elas não conseguiam ler e interpretar o que estava acontecendo no ambiente. A expressão que mais diz algo para a criança ainda é o sorriso.

Os brasileiros, conhecidos como um povo caloroso, foram obrigados a reduzir o contato físico e manter distanciamento mesmo de pessoas queridas. É difícil dizer se vamos voltar a falar tão perto, encostar um nos outros com frequência, cumprimentar todo mundo com beijinhos e abraços. Mas, talvez, para essa geração, essa proximidade toda não seja tão natural como já foi um dia para os adultos.

Boa parte desses pequenos não sabe o que é comemorar um aniversário de verdade. O Natal foi esvaziado. Carnaval, então, nem se fala. São rituais sociais perdidos. Para a educadora, a percepção disso tudo vai ser com mais estranhamento, e talvez gere uma inibição social maior.

Desafios em casa

A presença dos pais mais tempo em casa, diferentemente do que se esperava no início, não se reverteu, necessariamente, em mais tempo com os filhos. Quem pode trabalhar no esquema home office viu o trabalho invadir o lar, antes um espaço de aconchego. Além da falta de tempo, paciência e exclusividade, os pequenos observaram a família consumida: pelo medo da doença, pela dor do luto e pelas preocupações com o desemprego e a crise econômica.

— As práticas parentais pioraram, porque os pais tinham que monitorar as crianças mesmo trabalhando. Elas certamente visualizaram mais discussões e medo. A criança pode não ter compreensão do assunto, mas tem percepção do sentimento da casa — afirma Manzoli.

Pesquisa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, referência em primeira infância, revelou que, ao serem questionadas se tiveram oportunidade de ficar com a criança sem ter que trabalhar por quatro meses, apenas 34% das mães de classe D responderam que sim. É um preço alto cobrado pelo trabalho informal. Mas mesmo entre as mães de classes altas, A e B, só 49% conseguiram usufruir de uma licença maternidade.

Sem licença, creche, avós, vizinhas ou funcionárias, a televisão tornou-se o braço direito de muitas famílias na pandemia. A Sociedade Brasileira e Pediatria recomenda, até os dois anos de idade, que as crianças fiquem afastadas das telas. Meta que poucas conseguiram alcançar. Mas, segundo especialistas, o excesso de TV e celular já provoca confusão no diagnóstico de certas crianças sobre pertencer ou não ao espectro autista.

— A exposição às telas preocupa. Não há a interação, a troca fundamental para o desenvolvimento. Quando a criança emite um som, uma pessoa responde, se alguém fala, ela faz um gesto, com a TV ou celular não há esse bate-bola. Além disso, há um excesso de estímulos — explica a psicóloga Elisa Altafim, especialista da área de Parentalidade da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

Se o impacto da pandemia sobre os “coronials” é provável, a boa notícia é que existe a plasticidade cerebral. Assim, com um bom estímulo, o retorno gradual das atividades, das escolas e do convívio social, o cérebro é capaz de se readequar.

Informações: O Globo

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