Colombiano, condenado há 25 anos pelo assassinato de namorada, é empresário e vive em Minas Gerais com mulher e dois filhos

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Os fogos recém haviam estourado no céu, e era pouco depois da meia-noite daquele dia 1º de janeiro de 1994, quando Martín Eduardo Mestre Yunez viu parar em frente à sua casa, na Rua 93, em Barranquilla (Colômbia), uma caminhonete Chevrolet Silverade, modelo 1.500, preta e marfim, com placa de Puerto Colômbia. Era Jaime Enrique Saade Cormane. Acompanhado de um outro rapaz, Victor Tuiran Quintero, ele pediu autorização a Yunez para que sua namorada, Nancy Mestre Vargas, de 18 anos, os acompanhasse nas comemorações de ano novo. Quando permitiu que a filha entrasse no carro com a dupla, sob a condição de que estivesse de volta às 3h da manhã, o colombiano nunca poderia imaginar que jamais falaria com ela de novo.

Tampouco ele poderia prever que, 27 anos após a morte da jovem, ainda estaria lutando, aos 79 anos de idade, para que Cormane, condenado em 1996 por estuprá-la e matá-la, fosse punido. Isso porque, logo após o crime, o assassino fugiu para o Brasil, onde adquiriu nome e documentos falsos, passou a morar em Belo Horizonte (MG), casou, virou empresário, teve dois filhos, até que, quando foi descoberto pela Polícia Federal e pela Interpol, já era tarde demais, segundo os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF): o crime havia prescrito.

Desde novembro do ano passado, após alvará de soltura expedido pelo Supremo, Jaime Saade deixou o Complexo Penitenciário Nelson Hungria e voltou a viver sua vida normalmente no Brasil, ao lado da esposa e dos filhos, um rapaz de 25 anos, e uma menina um pouco mais jovem. Tanto ele quanto a companheira são empresários e vivem uma vida de classe média na capital de Minas Gerais. Desde que chegou em solo brasileiro, ele, que nega que tenha cometido o crime nos anos 1990, nunca mais retornou à Colômbia, onde ainda é procurado e, também, onde o caso provoca, até hoje, grande comoção nacional.

Perícia forense decisiva para sentença

Naquela noite de ano novo, ao estranhar a demora de Nancy em voltar para casa após o horário combinado, às 6h da manhã Martín resolveu procurá-la em vários lugares onde imaginava que poderia estar, mas sem sucesso. Por fim, foi à casa da família Saade, onde a mãe do rapaz atendeu a porta. Segundo seu depoimento, a mulher era evasiva em suas respostas, o que fez com que ele desconfiasse e forçasse sua entrada no apartamento. Foi quando, ainda de acordo com os autos contidos no pedido de extradição, ele encontrou vestígios de sangue na sala de estar e materiais de limpeza que eram usados por ela para sumir com rastros. A explicação dada era de que Nancy havia se acidentado e que tinha sido levada à Clínica del Caribe. Chegando na unidade de saúde, o pai ouviu da boca de Jaime Enrique que sua filha havia tentado suicídio com um revólver, e que estava passando por uma cirurgia. Ela morreria oito dias depois por conta das complicações de um tiro que perfurou o crânio, e o rapaz não seria nunca mais visto em solo colombiano.

Nancy Mestre morreu na noite do ano novo de 1994 após se encontrar com o namorado Foto: Reprodução
Nancy Mestre morreu na noite do ano novo de 1994 após se encontrar com o namorado Foto: Reprodução

A perícia forense à época detectou que a jovem não havia cometido suicídio, visto que as marcas de pólvora estavam na mão oposta ao lado da têmpora onde havia um ferimento por arma de fogo. O corpo também tinha marcas de ferimentos nos braços, coxas e na região vaginal, onde também foram encontrados resquícios de sêmen. Além disso, havia restos de pele sob as unhas, o que indicava que a jovem tentou se defender. Em 5 de julho de 1996, quando já era tido como um “fantasma”, ele foi condenado pela Justiça da Colômbia a 27 anos de prisão pelos crimes de homicídio e “acesso carnal violento”, que no Brasil é análogo ao estupro. Em abril de 1998, entrou para a lista vermelha de procurados da Interpol.

A atividade realizada pelo braço científico da Justiça (leiase Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses) na prática de exames e conceitos emitidos de forma oportuna e eficiente nos mostram claramente que Nancy Mariana Mestre Vargas foi tomada carnalmente nas primeiras horas do mês de janeiro de 1994 no quarto de Jaime Saade Cormane, com quem estava, depois de haver sido buscada por ele na residência da vítima, como expressado na descrição dos fatos que fizemos nesta providência. No processo fica comprovado de forma fidedigna que, no momento em que ocorreram os fatos, no quarto de Jaime Saade unicamente estavam o acusado e a vítima, e Jaime Saade, depois de infligir o ferimento em sua cabeça com o projétil de arma de fogo, posteriormente recolhida pela polícia com uma cápsula percutida e as outras cinco sem percutir, desceu as escadas do segundo andar, onde estava, e dirigiu-se até a janela do quarto do pai, pedindo sua ajuda, passando a transferir a vítima moribunda até a Clínica dei Caribe, onde a deixou e ocorreu a fuga.”, diz trecho do ofício enviado pelo governo colombiano à Justiça brasileira.

Extradição negada

A história vai parar no Brasil após longos 25 anos de buscas de um pai tão angustiado quanto obcecado por justiça. Martín Mestre, por conta própria, aprendeu sobre investigação criminal e passou anos vasculhando a internet atrás de rastros que levassem até o assassino de sua filha, usando como base pessoas que, ele apostava, ainda tinham laços com ele. Foi dessa forma que ele chegou até a cidade de Belo Horizonte, o que ajudou a busca da Interpol. Em agosto de 2019, a Polícia Federal representou pela prisão cautelar para fins de extradição de Saade, que foi concedida pelo ministro Dias Toffoli na ocasião, durante recesso judiciário. Mas foi só em janeiro de 2020 que uma operação da Interpol com a PF terminou na prisão preventiva de Jaime Enrique Saade Cormane, que, aos 57 anos àquela altura, agora era conhecido em terras brasileiras pelo nome falso Henrique dos Santos Abdala — fato confessado por ele em interrogatório dois meses depois.

No entanto, apesar de considerado pela Interpol como um dos fugitivos mais procurados do mundo, meses depois, o mesmo Supremo Tribunal Federal (STF) que autorizou a prisão não deu aval à extradição, sob a justificativa de que, por terem se passado mais de 20 anos desde a condenação na Colômbia, o crime havia prescrito, segundo as leis brasileiras, e nenhum outro delito comprovado de lá para cá “congelou” a contagem — ainda não houve condenação pelo crime de falsidade ideológica, tampouco comprovação de que ele o cometeu após a condenação em 1996. Por fim, o governo colombiano não conseguiu extraditá-lo e hoje ele responde em liberdade apenas por falsificar identidade e documentos. A Turma do STF que, por empate na votação, julgou improcedente o pedido de extradição em agosto de 2020, foi composta por Gilmar Mendes (relator) e Cármen Lúcia — que foram vencidos —, Edson Fachin (redator do acórdão) e Ricardo Lewandowski.

A reportagem tentou contato com Martín Mestre, mas não obteve retorno. Em entrevista publicada esta semana em El País, ele comentou sobre a angústia que ainda paira em sua vida após a extradição negada.

— Desde aquele dia eu vivo em função de ele ser capturado. Não é uma obsessão, é um dever de pai — afirmou. — A sensação que tive é que julgaram o destino do assassino da minha filha como se fosse um jogo de futebol. Chorei muito, chorei muito por esse caso, mas não me canso, nunca vou desistir. Vamos trazê-lo para a Colômbia e ele vai começar a pagar.

Condenado, Saade nega o crime

Saade ainda nega que tenha cometido o crime. Enquanto estava na prisão, escreveu à mão várias folhas de uma carta direcionada à imprensa colombiana, onde diz ser alvo de injustiça. Ele conta uma versão completamente diferente da apresentada pela Justiça colombiana.

“Estou vendo os ataques e mentiras vindos só de um dos lados dessa história, sem ninguém para me defender, então decidi escrever esta carta, contando o que realmente aconteceu”. escreveu. “Fui ao banheiro que ficava fora do quarto e, depois de alguns minutos, ouvi um tiro e imediatamente sai e a vi no chão, com muito sangue e o revolver ao lado dela”, narrou.

O GLOBO entrou em contato com o advogado de Jaime Enrique Saade Cormane, Fernando Oliveira. Segundo ele, seu cliente segue sem querer comentar sobre as acusações na imprensa, mas continua alegando que não cometeu o crime contra a namorada.

— Ele continua alegando a inocência dele, desde o primeiro dia em que falei com ele, a esposa e os filhos. Mas isso já não altera em nada, porque ele já foi condenado, e o crime já prescreveu. Ele me contou exatamente os detalhes de tudo o que aconteceu. Infelizmente, todo mundo imagina que ele seja culpado, por mais que a sentença tenha suas fragilidades — diz o advogado, que destaca que o fato de a  condenação de Jaime Saade nunca ter sido revista por instâncias superiores. — Ele, por exemplo, foi condenado por estupro, mas eles eram namorados, já tinham tido relações sexuais muito antes. Estavam numa festa de réveillon, onde rolava de tudo.

Sobre o processo que corre contra ele acerca da documentação falsa, o advogado disse acreditar que não irá representar ameaça a Jaime Saade em relação a uma possível expulsão do Brasil.

— Ele nega que tenha falsificado esses documentos, mas admite que não estava com seus documentos originais. Ele está respondendo, é um crime de menor potencial ofensivo — afirmou. —  A família da Nancy tem uma expectativa muito grande de que o STF reveja essas questões da extradição, mas isso é algo que não tem nenhuma possibilidade de acontecer, porque a decisão do Supremo já transitou em julgado. Poderia se pensar, também que, caso condenado pela falsificação de documentos, ele seria expulso do país por ter cometido um crime no exterior. Mas a lei proíbe que, quando indefirido um processo de extradição, busque-se como recurso a expulsão. E, ainda que não existisse essa regra, ele possui familia aqui, união estável há mais de duas décadas, filhos brasileiros.

Linha do tempo

  • 1º de janeiro de 1994 (0h) — Por volta de meia-noite, Nancy Mestre, de 18 anos, deixa sua casa de carro com o namorado, Jaime Enrique Saade Cormane, e um amigo, prometendo ao pai, Martín Mestre, voltar até as 3h.
  • 1º de janeiro de 1994 (6h) — Preocupado, o pai passa a procurar a filha em diferentes lugares, até que encontra vestígios de sangue na casa da mãe de Jaime, que agia estranho. Ela, então, conta que a garota está num hospital da região, após ter sofrido um acidente. Na clínica, Jaime Henrique diz a Martín que sua filha tentou se matar e que estava passando por uma cirurgia.
  • 9 de janeiro de 1994 — Nancy não resiste ao tiro que atravessou sua cabeça e morre; àquela altura, Martín afirma que o namorado da menina já não podia mais ser localizado.
  • 5 de julho de 1996 — Após perícias forenses confirmarem que houve violência sexual contra Nancy, e que elementos como a posição da pólvora encontrada em suas mãos indicavam que ela tentava se defender, e não tirar sua própria vida, Jaime Enrique Saade Cormane é condenado à pena 27 anos pela Justiça pelos crimes de homicídio e estupro.
  • 21 de abril de 1998 — Escritório da Interpol em Bogotá, na Colômbia, inclui o nome do foragido Jaime Enrique Saade Cormane na difusão vermelha, para responder a pena por homicídio e estupro.
  • 28 de agosto de 2019 — Polícia Federal do Brasil representa pela prisão cautelar de Jaime Enrique, para que ele possa ser extraditado. Ministro Dias Toffoli, do STF, concede.
  • 28 de janeiro de 2020 — Operação da Interpol prende Jaime Enrique Saade Cormane, que, com documentos falsos, passou a se chamar Henrique dos Santos Abdala no Brasil; por aqui, ele era casado e já tinha dois filhos.
  • Agosto de 2020 — Turma do STF decide negar extradição a Saade Cormane, alegando que o crime já prescreveu no Brasil.
  • 20 de outubro de 2020 — 11ª Vara Federal da Seção Judiciária de Minas Gerais comunica cumprimento do alvará de soltura expedido pelo STF para o assassino condenado na Colômbia.

Informações; O Globo

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